quinta-feira, 19 de abril de 2012

A ELOQUÊNCIA DAS PAIXÕES

LVI




A eloquência das paixões ilude-nos quase sempre; entendo por isso esta fantasmagoria triste ou alegre, brilhante ou lúgubre, que nos desenrola a imaginação conforme o nosso corpo está em repouso ou fatigado, excitado ou deprimido. Muito naturalmente, acusamos então as coisas e os nossos semelhantes, em vez de adivinhar e de modificar a causa real, muitas vezes pequena e sem consequência.

Neste tempo em que os exames começam a erguer-se no horizonte, mais de um candidato trabalha com a luz acesa, cansa os olhos, e sente um mal de cabeça difuso; pequenos males que se curam bem depressa pelo repouso e o sono. Mas o candidato ingénuo não pensa assim. Constata primeiro que não aprende depressa, que as ideias ficam num nevoeiro e que o pensamento dos autores fica no papel em vez de virem ter com ele; então entristece com as dificuldades do exame e as suas próprias aptidões; depois dirigindo o seu olhar para o passado, e contemplando todas as suas recordações através do mesmo nevoeiro triste, apercebe-se ou crê aperceber-se que não fez grande coisa de útil, que tudo deve ser revisto, que nada se esclarece, nem se ordena; olhando agora para o futuro, pensa que o tempo é curto e que o trabalho é bem lento; por isso volta ao seu livro, a cabeça entre as duas mãos, quando se devia deitar e dormir; o mal esconde-lhe o remédio; e é justamente porque está fatigado que se lança no trabalho. Ser-lhe-ia preciso aqui a profunda sabedoria dos estóicos elucidada ainda por Descartes e por Spinoza. Sempre desconfiado, perante as provas da imaginação, deveria, por reflexão, adivinhar aqui a eloquência das paixões, e recusar crer, o que destruiria subitamente o seu mal mais evidente; porque um pouco de dor de cabeça e de fadiga dos olhos é suportável e não dura muito; mas o desespero é terrível e agrava por si mesmo as causas.

Eis a armadilha das paixões. Um homem muito zangado desempenha para si mesmo uma tragédia bem chocante, vivamente iluminada, em que se representam as faltas do seu inimigo, as suas astúcias, os seus preparativos, os seus desprezos, os seus projectos para o futuro; tudo é interpretado segundo a cólera, e a cólera aumenta ainda mais; dir-se-ia um pintor que pintasse as Fúrias e que se fizesse medo a si mesmo. Aí está por que espécie de mecanismo uma cólera acaba muitas vezes em tempestade, e por fracas causas, engrossadas somente pela tempestade do coração e dos músculos. É no entanto claro que o meio de acalmar toda esta agitação não é de maneira nenhuma pensar como historiador e passar em revista insultos, queixas e reivindicações; porque tudo isso está falsamente esclarecido, como num delírio. Aqui também é preciso, por reflexão, adivinhar a eloquência das paixões e recusar crer. Em vez de dizer: “Este falso amigo  sempre me desprezou”, dizer: "Nesta agitação vejo mal, julgo mal; não sou mais do que um actor trágico que declama para si mesmo.” Então vereis o teatro apagar as luzes por falta de público; e a brilhante decoração não será mais do que uma borradela. Sabedoria real; arma real contra a poesia da injustiça. Infelizmente, somos aconselhados e conduzidos por moralistas de ocasião que só sabem pôr-se em delírio e dar o seu mal aos outros.


Alain
(Tradução de José Ames)

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