quarta-feira, 4 de abril de 2012

FELIZES AGRICULTORES

XLVIII



O trabalho é a melhor e a pior das coisas; a melhor, se é livre; a pior, se é servo. Chamo livre ao primeiro grau do trabalho regulado pelo próprio trabalhador, segundo o seu saber próprio e segundo a experiência, como o dum carpinteiro que faz uma porta. Mas há diferença se a porta que ele faz é para o seu próprio uso, porque é então uma experiência que tem futuro; poderá ver a madeira à prova, e o seu olho se regozijará pela fenda que tinha previsto. É preciso não esquecer esta função da inteligência que faz paixões se não fizer portas. Um homem é feliz se pode rever os traços do seu trabalho e os continua, sem outro patrão a não ser a coisa, cujas lições são sempre bem recebidas. Ainda melhor se se constrói o barco em que se vai navegar; há um reconhecimento em cada manobra do leme, e os menores cuidados se reencontram. Vêem-se às vezes nos subúrbios operários que fazem uma casa pouco a pouco, conforme os materiais que arranjam e conforme o vagar; um palácio não dá tanto prazer; e a verdadeira felicidade do príncipe é ainda fazer construir segundo os seus planos; mas feliz acima de todos aquele que sente a marca do seu martelo no cadeado da sua porta. O esforço então faz justamente o prazer; e todo o homem preferirá um trabalho difícil, em que inventa e se engana à vontade, a um trabalho seguido, mas segundo ordens. O pior trabalho é aquele que o chefe vem perturbar ou interromper. A mais infeliz das criaturas é a criada para todo o serviço, quando a desviam das suas facas para o soalho; mas as mais enérgicas de entre elas conquistam o império dos seus trabalhos e assim se fazem uma felicidade.

A agricultura é pois o mais agradável dos trabalhos, desde que se cultive o seu próprio campo. O sonho vai continuamente do trabalho aos efeitos, do trabalho começado ao trabalho continuado; o próprio ganho não está tão presente nem é tão continuadamente percebido como a terra mesma, ornada com as marcas do homem.  É um prazer desmedido charruar à vontade sobre os calhaus que pusemos. E passa-se muito bem sem os lucros se estamos seguros de trabalhar sempre na mesma encosta. É por isso que o servo ligado à terra era menos servo do que um outro. Toda a domesticidade é suportada, desde que tenha poder sobre o seu próprio trabalho e certeza de durar. Seguindo estas regras, é fácil ser bem servido, e mesmo  viver do trabalho dos outros. Só que o patrão se aborrecerá; daí o jogo e as coristas. É sempre pelo aborrecimento e as suas loucuras que a ordem social se rompe.

Os homens de hoje não diferem muito dos Godos, dos Francos, dos Alamanos, e outros saqueadores temíveis. A questão é que eles não se aborreciam. Não se aborrecerão se trabalharem de manhã até à noite segundo a sua própria vontade. É assim que uma agricultura massiva reduz a movimentos de algum modo ciliares a agitação dos aborrecidos. Mas é preciso convir que o fabrico em série não oferece de maneira nenhuma os mesmos recursos. Seria preciso casar a indústria com a agricultura como se casa a vinha ao ulmeiro. Toda a fábrica seria campestre; todo o operário fabril seria proprietário dum bem ao sol e cultivaria ele mesmo. Esta nova Salento compensaria o espírito agitado pelo espírito ponderado. Não se vê uma tentativa deste género no magro jardim do agulheiro, que floresce nas margens do tráfego tão obstinadamente como a erva cresce na calçada?


Alain
(Tradução de José Ames)

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