terça-feira, 10 de abril de 2012

OLHA AO LONGE

LI


Ao melancólico só tenho uma coisa a dizer: “Olha ao longe.” Quase sempre o melancólico é um homem que lê demasiado. O olho humano não foi feito para essa distância, É nos grandes espaços que repousa. Quando olhas as estrelas ou o horizonte do mar, o olho está completamente distendido, a cabeça livre, a marcha mais segura; tudo se distende  e flexibiliza até às vísceras. Mas não tentes distender-te pela vontade; a tua vontade em ti, aplicada em ti, puxa de través e acabará por te estrangular; não penses em ti; olha ao longe.

É verdade que a melancolia é doença; e o médico pode algumas vezes adivinhar a causa e dar o remédio; mas este remédio reconduz a atenção para o corpo, e a preocupação que se tem de seguir o regime destrói justamente o efeito; eis por que o médico, se é sábio, te reencaminha para o filósofo. Mas, quando corres ao filósofo, o que é que encontras? Um homem que lê demasiado, que pensa como um míope, e que é mais triste do que tu.

O Estado devia ter  escola de  sageza como de medicina. E como? Pela verdadeira ciência, que é contemplação das coisas, e poesia grande como o mundo. Porque a mecânica dos nossos olhos, que se repousam nos largos horizontes, ensina-nos uma grande verdade. É preciso que o pensamento liberte o corpo e o devolva ao Universo, que é a nossa verdadeira pátria. Há um profundo parentesco entre o nosso destino de homem e as funções do nosso corpo. O animal, desde que as coisas próximas o deixam em paz, deita-se e dorme; o homem pensa; se é um pensamento de animal, coitado dele. Ei-lo que duplica os seus males e as sua necessidades; ei-lo que se tortura de medo e esperança; o que faz com que o seu corpo não cesse de ficar tenso, de se agitar, de se lançar, de se retrair, segundo os jogos da imaginação; sempre suspeitando, sempre espiando coisas e pessoas à volta dele. E se se quer libertar, ei-lo nos seus livros, universo fechado ainda, demasiado perto dos seus olhos, demasiado perto das suas paixões. O pensamento constrói-se uma prisão e o corpo sofre; porque dizer que o pensamento se estreita e dizer que o corpo trabalha contra si próprio, é dizer a mesma coisa. O ambicioso refaz mil vezes os seus discursos, e o amoroso mil vezes as suas orações. É preciso que o espírito viage e contemple, se se quer que o corpo esteja bem.

Ao que a ciência nos conduzirá, desde que não seja ambiciosa, nem tagarela, nem impaciente; desde que nos desvie dos livros e leve o nosso olhar à distância do horizonte. É preciso portanto que seja percepção e viagem. Um objecto, pelas relações verdadeiras que nele descobres, conduz-te a um outro e a mil outros, e este turbilhão do rio transporta o teu pensamento até aos ventos, até às nuvens, e até aos planetas. O verdadeiro saber nunca se reduz a alguma pequena coisa muito perto dos olhos; porque saber é compreender como a menor coisa está ligada ao todo; nenhuma coisa tem a sua razão em si, e assim o movimento justo nos afasta de nós mesmos; isso não é menos são para o espírito do que para os olhos. Por onde o teu espírito se repousará neste universo que é o seu domínio, e se acordará com a vida do teu corpo que está ligada também a todas as coisas. Quando o cristão dizia: “O céu é a nossa pátria”, não julgava dizer tão bem. Olha ao longe.


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário