LXIII
Há no entanto males reais que cheguem; isso não impede que
as pessoas lhes acrescentem, por uma espécie de arrebatamento da imaginação.
Encontrais todos os dias pelo menos um homem que lamenta o trabalho que faz, e
os seus discursos parecer-vos-ão fortes, porque de tudo há que dizer, e nada é
perfeito.
Você, professor, tem que, diz, instruir jovens brutos que
não sabem nada e que não se interessam por nada; você, engenheiro, está
mergulhado num oceano de papelada; você, advogado, pleiteia diante de juízes
que digerem dormitando em vez de o escutarem. O que dizeis é sem dúvida
verdadeiro, e eu tomo-o como tal; essas coisas são sempre bastante verdade para
que possam ser ditas. Se com isso tiverdes um mau estômago, ou sapatos que
deixam entrar a água, compreendo-vos muito bem; eis de que amaldiçoar a vida,
os homens, e mesmo Deus, se credes que ele existe.
No entanto, notai uma coisa, é que isso não tem fim, e que
a tristeza engendra a tristeza. Porque, queixando-vos assim do destino,
aumentais os vossos males, retirai-vos antecipadamente toda a esperança de rir,
e o vosso próprio estômago fica ainda pior. Se tivésseis um amigo, e se ele se
queixasse amargamente de todas as coisas, tentaríeis sem dúvida acalmá-lo e
fazer-lhe ver o mundo sob um outro aspecto. Por que não seríeis um precioso
amigo para vós mesmos? Mas sim, seriamente, digo que é preciso amar-se um pouco
e ser bom para consigo. Porque tudo depende muitas vezes da primeira atitude
que se toma. Um autor antigo disse que todo o acontecimento tem duas pegas, e
que para o trazer não é sábio escolher a
que magoa a mão. A linguagem comum sempre chamou de filósofos aqueles que
escolhiam em toda a ocasião o melhor discurso e o mais tónico; é apontar ao
centro. Trata-se pois de litigar por si, não contra si. Nós somos todos tão
bons litigantes, e tão arrebatadores, que saberemos bem encontrar razões para
estar contentes, se tomarmos esse caminho.
Muitas vezes observei que é por inadvertência e um pouco também por polidez, que os homens se
queixam do seu ofício. Se os inclinamos a falar daquilo que fazem e daquilo que
inventam, não do que suportam, ei-los poetas, e felizes poetas.
Eis uma pequena chuva; estais na rua, abris o
guarda-chuva; basta. Para que serve dizer: “Faltava a porra desta chuva!”;
isso não faz nada às gotas de água, nem à nuvem, nem ao vento. Por que não
dizeis também: "Oh! Que rica chuvinha!” Parece que estou a ouvir-vos, isso não
vai fazer nada às gotas de água; é verdade; mas será bom para vós; todo o vosso
corpo se sacudirá e verdadeiramente se
aquecerá, porque tal é o efeito do mais pequeno movimento de alegria; e eis-vos
como é preciso para receber a chuva sem vos constipardes.
E tomai também os homens como a chuva. Não é fácil, dizeis
vós. Mas sim; é bem mais fácil do que para a chuva. Porque o vosso sorriso não
faz nada à chuva, mas faz muito aos homens, e, simplesmente por imitação,
torna-os já menos tristes e menos aborrecidos. Sem contar que lhes encontrareis
facilmente desculpas, se olhardes para vós mesmos. Marco Aurélio dizia todas as
manhãs: “Hoje vou encontrar um vaidoso, um mentiroso, um injusto, um aborrecido
tagarela; eles são assim por causa da sua ignorância.”
Alain
(Tradução de José Ames)
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