terça-feira, 1 de maio de 2012

DEBAIXO DE CHUVA

LXIII


Há no entanto males reais que cheguem; isso não impede que as pessoas lhes acrescentem, por uma espécie de arrebatamento da imaginação. Encontrais todos os dias pelo menos um homem que lamenta o trabalho que faz, e os seus discursos parecer-vos-ão fortes, porque de tudo há que dizer, e nada é perfeito.

Você, professor, tem que, diz, instruir jovens brutos que não sabem nada e que não se interessam por nada; você, engenheiro, está mergulhado num oceano de papelada; você, advogado, pleiteia diante de juízes que digerem dormitando em vez de o escutarem. O que dizeis é sem dúvida verdadeiro, e eu tomo-o como tal; essas coisas são sempre bastante verdade para que possam ser ditas. Se com isso tiverdes um mau estômago, ou sapatos que deixam entrar a água, compreendo-vos muito bem; eis de que amaldiçoar a vida, os homens, e mesmo Deus, se credes que ele existe.

No entanto, notai uma coisa, é que isso não tem fim, e que a tristeza engendra a tristeza. Porque, queixando-vos assim do destino, aumentais os vossos males, retirai-vos antecipadamente toda a esperança de rir, e o vosso próprio estômago fica ainda pior. Se tivésseis um amigo, e se ele se queixasse amargamente de todas as coisas, tentaríeis sem dúvida acalmá-lo e fazer-lhe ver o mundo sob um outro aspecto. Por que não seríeis um precioso amigo para vós mesmos? Mas sim, seriamente, digo que é preciso amar-se um pouco e ser bom para consigo. Porque tudo depende muitas vezes da primeira atitude que se toma. Um autor antigo disse que todo o acontecimento tem duas pegas, e que  para o trazer não é sábio escolher a que magoa a mão. A linguagem comum sempre chamou de filósofos aqueles que escolhiam em toda a ocasião o melhor discurso e o mais tónico; é apontar ao centro. Trata-se pois de litigar por si, não contra si. Nós somos todos tão bons litigantes, e tão arrebatadores, que saberemos bem encontrar razões para estar contentes, se tomarmos esse caminho.  Muitas vezes observei que é por inadvertência e  um pouco também por polidez, que os homens se queixam do seu ofício. Se os inclinamos a falar daquilo que fazem e daquilo que inventam, não do que suportam, ei-los poetas, e felizes poetas.

Eis uma pequena chuva; estais na rua, abris o guarda-chuva; basta. Para que serve dizer: “Faltava a porra desta chuva!”; isso não faz nada às gotas de água, nem à nuvem, nem ao vento. Por que não dizeis também: "Oh! Que rica chuvinha!” Parece que estou a ouvir-vos, isso não vai fazer nada às gotas de água; é verdade; mas será bom para vós; todo o vosso corpo se sacudirá e verdadeiramente  se aquecerá, porque tal é o efeito do mais pequeno movimento de alegria; e eis-vos como é preciso para receber a chuva sem vos constipardes.

E tomai também os homens como a chuva. Não é fácil, dizeis vós. Mas sim; é bem mais fácil do que para a chuva. Porque o vosso sorriso não faz nada à chuva, mas faz muito aos homens, e, simplesmente por imitação, torna-os já menos tristes e menos aborrecidos. Sem contar que lhes encontrareis facilmente desculpas, se olhardes para vós mesmos. Marco Aurélio dizia todas as manhãs: “Hoje vou encontrar um vaidoso, um mentiroso, um injusto, um aborrecido tagarela; eles são assim por causa da sua ignorância.”


Alain
(Tradução de José Ames)

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