segunda-feira, 14 de maio de 2012

BENEVOLÊNCIA

LXXI


“Como é difícil estarmos contentes com alguém!” Estas severas palavras de La Bruyère devem tornar-nos já prudentes. Porque o bom senso quer que cada um se adapte às condições reais da vida em sociedade e não é justo condenar o homem mediano; é loucura de misantropo. Portanto, sem procurar as causas, acautelo-me para não considerar os meus semelhantes como se eu fosse um espectador que pagou o seu lugar e que quer que lhe agradem.  Mas ao contrário, reexaminando em mim mesmo o comum desta difícil existência,  ponho tudo à partida no pior; suponho que o interlocutor tem um  mau estômago  ou uma dor de cabeça, ou então dificuldades financeiras ou querelas domésticas. Céu incerto, digo-me eu, céu de Março, cinzento e azul à mistura, raios de sol e vento frio; tenho as minhas peles e o meu guarda-chuva.

Bom. Mas há melhor do que pensar sobre isso, se imaginarmos este instável corpo humano, fremente ao menor toque, sempre inclinado, logo arrebatado, como um ramo de festa, os sentimentos constantes, o respeito e a conversa agradável à qual parece-me que tenho direito. No entanto, eu próprio, que estou assim atento ao outro, não o estou nada em relação a mim; lanço mensagens que ignoro, por um gesto maquinal, por um franzir do cenho; o sol e o vento compõem o meu rosto. Eu ofereço ao outro justamente aquilo que me espanta encontrar nele, um homem, quer dizer um animal com a obrigação do espírito, que se toma sempre demasiado alto, e depois demasiado baixo, que não pode fazer um sinal sem fazer logo dez, bem melhor que faz sinais com toda a sua pessoa, sem poder escolher.  Nesta mistura, eu devo, como o pesquisador de oiro, negligenciar o cascalho e a areia, e reconhecer a mais pequena palheta; sou eu quem tem de procurar; nenhum homem peneira os discursos que lança, como o faz dos que ouve. Eis-me então disposto segundo a cortesia, e ainda melhor; abro um largo crédito ao outro, deixo as escórias, espero o seu verdadeiro pensamento. Mas aqui noto um outro efeito com o qual não contamos nunca o bastante. Esta benevolência, que eu mostro, desata imediatamente esse tímido que avança em armas e todo eriçado. Em suma, destes dois humores que rolam um para o outro como nuvens, é preciso que um comece a sorrir; se não sois vós a começar, sois um tolo.

Não há homem de que não se possa dizer e pensar muito mal; não há homem de que não se possa dizer e pensar muito bem. E a natureza humana é feita de tal modo que não tem medo de desagradar; porque a irritação, que dá coragem, segue a timidez de muito perto; e o sentimento que temos de ser desagradáveis torna logo pior. Mas compete a vós, que compreendestes estas coisas, não entrar nunca neste jogo. É uma experiência espantosa esta e que eu vos peço que façais uma vez; é mais fácil governar directamente o humor dos outros que o seu próprio; e quem maneja com precaução o humor do interlocutor é médico do seu humor por este meio; porque, na conversação tal como na dança, cada um é o espelho do outro.


Alain
(Tradução de José Ames)

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