LXXVIII
Descartes diz que a irresolução é o maior dos males. Di-lo
mais de uma vez, nunca o explica. Não conheço maior luz sobre a natureza do
homem. Todas as paixões, todo o seu estéril movimento se explicam por aí. Os
jogos de azar, tão mal conhecidos na sua força, que é sobre o alto da alma,
agradam porque entretêm o poder de decidir. É como um desafio à natureza das
coisas, que põe tudo quase igual, e que alimenta sem fim as nossas menores
deliberações. No jogo, tudo é em rigor igual e é preciso escolher. Este risco
abstracto é como um insulto à reflexão; é preciso saltar o passo. O jogo responde imediatamente: e não
se pode ter daqueles arrependimentos que envenenam os nossos pensamentos; não
se pode tê-los porque não havia razão. Não se diz: “Se eu soubesse”, pois que a
regra é que não se possa saber. Não me admiro que o jogo seja o único remédio
para o aborrecimento; porque o aborrecimento é principalmente de deliberar,
sabendo bem que é inútil deliberar.
Pode-se perguntar de que é que sofre um homem enamorado
que não consegue dormir, ou um ambicioso desiludido. Este género de mal está todo no pensamento, embora se
possa dizer também que está todo no corpo. Esta agitação que expulsa o sono vem apenas dessas vãs resoluções que
não decidem nada, e que são lançadas de cada vez ao corpo, e que o fazem saltar
como peixe na relva. Há violência na irresolução. “Está dito; romperei tudo”;
mas o pensamento oferece imediatamente meios de compromisso. Os efeitos
aparecem, dum partido e de outro, sem progresso nenhum. O benefício da acção
real é que o partido que não se tomou é esquecido e, propriamente falando, já
não tem lugar, porque a acção mudou todas as relações. Mas agir em ideia, não é
nada, e tudo fica na mesma. Há jogo em toda a acção; porque é preciso de facto terminar os pensamentos
antes que tenham esgotado o assunto.
Pensei muitas vezes que o medo, que é a paixão nua,
e a mais penosa, não é outra coisa que o sentimento duma irresolução, se
posso dizer, muscular. Sentimo-nos intimados a agir e incapazes. A vertigem
oferece uma face do medo ainda mais
limpa, pois que o mal vem apenas duma dúvida que não se pode superar. E é
sempre por demasiado espírito que se
sofre de medo. Certamente o pior nos males deste género, como também no
aborrecimento, é que nos julgamos
incapazes de nos livrarmos deles. Pensamo-nos máquina e desprezamo-nos. Todo o
Descartes está contido nesse juízo soberano onde as causas se mostram e também
o remédio. Virtude militar; e compreendo que Descartes tenha querido servir.
Turenne movia-se sempre, e assim se curava do mal da irresolução, dando-o ao
inimigo.
Descartes nos seus pensamentos é assim também. Arrojado
nos seus pensamentos e movendo-se por
decreto; sempre decidindo. A irresolução dum geómetra seria profundamente
cómica, porque não teria fim. Quantos pontos numa linha? E sabe-se o que se
pensa quando se pensam duas paralelas? Mas o génio do geómetra decide que se
sabe e jura somente não mudar nem voltar atrás. Não se verá nada de diferente
numa teoria, se se olhar bem, que erros definidos e jurados. Toda a força do
espírito neste jogo é nunca crer que constata, quando apenas decidiu. Aí se
encontra o segredo de estar sempre seguro sem jamais crer em nada. Resolveu,
eis uma bela palavra, e dois sentidos num.
Alain
(Tradução de José Ames)
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