quarta-feira, 23 de maio de 2012

DA IRRESOLUÇÃO

LXXVIII


Descartes diz que a irresolução é o maior dos males. Di-lo mais de uma vez, nunca o explica. Não conheço maior luz sobre a natureza do homem. Todas as paixões, todo o seu estéril movimento se explicam por aí. Os jogos de azar, tão mal conhecidos na sua força, que é sobre o alto da alma, agradam porque entretêm o poder de decidir. É como um desafio à natureza das coisas, que põe tudo quase igual, e que alimenta sem fim as nossas menores deliberações. No jogo, tudo é em rigor igual e é preciso escolher. Este risco abstracto é como um insulto à reflexão; é preciso saltar  o passo. O jogo responde imediatamente: e não se pode ter daqueles arrependimentos que envenenam os nossos pensamentos; não se pode tê-los porque não havia razão. Não se diz: “Se eu soubesse”, pois que a regra é que não se possa saber. Não me admiro que o jogo seja o único remédio para o aborrecimento; porque o aborrecimento é principalmente de deliberar, sabendo bem que é inútil deliberar.

Pode-se perguntar de que é que sofre um homem enamorado que não consegue dormir, ou um ambicioso desiludido. Este género  de mal está todo no pensamento, embora se possa dizer também que está todo no corpo. Esta agitação que expulsa  o sono vem apenas dessas vãs resoluções que não decidem nada, e que são lançadas de cada vez ao corpo, e que o fazem saltar como peixe na relva. Há violência na irresolução. “Está dito; romperei tudo”; mas o pensamento oferece imediatamente meios de compromisso. Os efeitos aparecem, dum partido e de outro, sem progresso nenhum. O benefício da acção real é que o partido que não se tomou é esquecido e, propriamente falando, já não tem lugar, porque a acção mudou todas as relações. Mas agir em ideia, não é nada, e tudo fica na mesma. Há jogo em toda a acção; porque é  preciso de facto terminar os pensamentos antes que tenham esgotado o assunto.

Pensei muitas vezes que o medo, que é a  paixão nua,  e a mais penosa, não é outra coisa que o sentimento duma irresolução, se posso dizer, muscular. Sentimo-nos intimados a agir e incapazes. A vertigem oferece uma face do medo ainda  mais limpa, pois que o mal vem apenas duma dúvida que não se pode superar. E é sempre  por demasiado espírito que se sofre de medo. Certamente o pior nos males deste género, como também no aborrecimento,  é que nos julgamos incapazes de nos livrarmos deles. Pensamo-nos máquina e desprezamo-nos. Todo o Descartes está contido nesse juízo soberano onde as causas se mostram e também o remédio. Virtude militar; e compreendo que Descartes tenha querido servir. Turenne movia-se sempre, e assim se curava do mal da irresolução, dando-o ao inimigo.

Descartes nos seus pensamentos é assim também. Arrojado nos seus pensamentos  e movendo-se por decreto; sempre decidindo. A irresolução dum geómetra seria profundamente cómica, porque não teria fim. Quantos pontos numa linha? E sabe-se o que se pensa quando se pensam duas paralelas? Mas o génio do geómetra decide que se sabe e jura somente não mudar nem voltar atrás. Não se verá nada de diferente numa teoria, se se olhar bem, que erros definidos e jurados. Toda a força do espírito neste jogo é nunca crer que constata, quando apenas decidiu. Aí se encontra o segredo de estar sempre seguro sem jamais crer em nada. Resolveu, eis uma bela palavra, e dois sentidos num.


Alain
(Tradução de José Ames)

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