quinta-feira, 3 de maio de 2012

EPICTETO

LXV


“Suprime a opinião falsa, suprimes o mal.” Assim fala Epicteto. O conselho é bom para aquele que esperava a Legião de Honra e que se impede de dormir pensando que não a tem. É dar poder de mais a uma fita; quem a pensasse tal como é, um pouco de seda, um pouco de granza, não estaria perturbado. Epicteto abunda em exemplos rudes; este amigo benfeitor agarra-nos pelo  ombro: “Eis-te triste, diz ele, porque não pudeste ocupar no circo o lugar desejado, e que tu crês que te é devido. Vem pois, o circo está vazio agora; vem tocar esta pedra maravilhosa; poderás mesmo sentar-te nela.” O remédio é o mesmo, contra todas as pedras e contra todos os sentimentos tirânicos; é preciso ir direito à coisa e ver o que é.

O mesmo Epicteto diz ao passageiro: “ Tens medo desta tempestade como se tivesses que engolir todo este grande mar; mas não, meu caro, basta um litro de água para te afogar.” É certo que este movimento formidável  das vagas representa muito mal o perigo real. Diz-se e pensa-se: “Mar furioso; voz do abismo; vagas enfurecidas; ameaça, assalto.” Isso não é verdade; são balanços segundo a gravidade, a maré e o vento; nenhum mau destino; não é todo este ruído nem todo este movimento que te vai matar; nenhuma fatalidade; podemos salvar-nos dum naufrágio; podemos afogar-nos numa água tranquila; o problema verdadeiro é este: conseguirás manter a cabeça fora de água? Ouvi contar que bons marinheiros, quando se aproximavam de algum rochedo maldito, se deitavam na barca cobrindo os olhos. Assim palavras ouvidas outrora os matavam. Os seus corpos, rejeitados sobre a mesma praia, testemunhavam pela opinião falsa. Aquele que soubesse pensar simplesmente os rochedos, as correntes, os remoinhos, e em suma as forças ligadas entre elas  e inteiramente explicáveis, libertar-se-ia de todo o terror e talvez de todo o mal. Enquanto se manobra só se vê um perigo de cada vez. O duelista hábil não tem medo, porque vê claramente aquilo que faz e o que faz o outro; mas se se entrega ao destino, o olhar negro que o espreita trespassa-o antes da espada; e este medo é pior do que o mal.

Um homem que tem uma pedra nos rins e que se entrega ao cirurgião imagina um ventre aberto e ondas de sangue. Mas o cirurgião não. O cirurgião sabe que não vai cortar uma única célula; que vai somente afastar as células desta colónia de células, fazer uma passagem; deixar correr talvez um pouco desse líquido no qual elas banham, menos sem dúvida do que custaria um corte numa mão mal pensada. Ele sabe quais são os verdadeiros inimigos destas células, e contra os quais elas  formam esse tecido cerrado que resiste ao ferro; sabe que este inimigo, o micróbio, está dentro da praça, nesta pedra que fecha o caminho às excreções naturais; sabe que o seu bisturi traz a vida, não a morte; sabe que, os inimigos afastados, tudo  vai reviver logo de seguida, como se vê que um golpe limpo se cura quase tão depressa como é feito.

Se o doente formar estas ideias, se suprime a opinião falsa, nem por isso fica curado da pedra; pelo menos fica curado do medo.


Alain
(Tradução de José Ames)

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