LXIX
Alguém me julgava ontem em poucas palavras: “Optimismo
incurável”. Certamente entendia-o mal, querendo dizer que eu sou assim por
natureza e que estou muito feliz com isso, mas que enfim uma ilusão benéfica
nunca passou pela verdade. É confundir aquilo que é com aquilo que se quer
fazer ser. Se se considera aquilo que vai por si, sem que se faça nada por
isso, o pessimismo é o verdadeiro; porque o curso das coisas humanas, desde que
o abandonemos, vai imediatamente ao pior; por exemplo, quem se entrega ao seu
humor é logo infeliz e mau. Isso é inevitável
pela estrutura do nosso corpo, que faz tudo acabar em mal quando o não
vigiamos, quando o não governamos mais. Observai que um grupo de crianças, por
falta dum jogo regrado, depressa chega a uma brutalidade informe. Aqui se
mostra a lei biológica da excitação que vai imediatamente à irritação. Fazei a
experiência de brincar a bater as mãos com uma criança; em breve ela se entrega
ao jogo com uma espécie de furor que resulta da sua acção mesma. Outra
experiência; fazer falar um rapazinho; admirai-o um pouco apenas; ele chega à
extravagância logo que tenha vencido a timidez. A lição vos fará corar a vós
mesmos, porque ela é boa para todos, ao mesmo tempo que amarga para todos; quem
quer que se afoite a falar, sem governar a máquina, diz prontamente asneiras
suficientes para maldizer em seguida a sua natureza e desesperar dele mesmo.
Julgai depois disso uma multidão em efervescência, e esperareis todo o mal possível.
No que não vos enganareis nada.
Mas aquele que conhece o mal pelas causas aprenderá a não maldizer e a
não desesperar. A falta de jeito é a lei de toda a experiência, não importa em
que género. O corpo, não formado pela ginástica, imediatamente se arrebata, e
seja desenho, ou esgrima, ou equitação, ou conversação, logo aponta mal e falha
naturalmente o alvo. Isso espanta, e parece dar razão ao pessimista; mas é
preciso compreender pelas causas, e a principal coisa a considerar aqui, é esta
ligação de todos os músculos que faz com que cada um deles, desde que se mexa,
desperta todos os outros, e não primeiro aqueles que devem cooperar. O
desajeitado pesa com todo o seu corpo sobre o menor movimento, e cada um é
desajeitado primeiro, nem que seja para enterrar um prego. No entanto, não há
limites à perícia que se pode adquirir com o exercício; todas as artes e todos
os ofícios testemunham isso. E o desenho, este traçado do gesto, é talvez o
testemunho mais eloquente de todos, quando é belo; porque essa mão pesada,
impaciente, irritada, carregada de todo o corpo é no entanto capaz desse traço
ligeiro, contido e como que purificado, submetido ao mesmo tempo ao juízo e à
coisa. E o homem que grita e irrita a sua garganta é o mesmo que cantará; porque
cada um recebe em herança este embrulho de nervos tremente e atado. É preciso
desatar; e não é um pequeno trabalho. E todos sabem bem que a cólera e o
desespero são os primeiros inimigos a vencer. É preciso crer, esperar e sorrir;
e com isso trabalhar. Assim a condição humana é tal que se não se dá como regra
das regras um optimismo invencível, logo o mais negro pessimismo é verdadeiro.
Alain
(Tradução de José Ames)
Sem comentários:
Enviar um comentário