quarta-feira, 9 de maio de 2012

DESATAR

LXIX




Alguém me julgava ontem em poucas palavras: “Optimismo incurável”. Certamente entendia-o mal, querendo dizer que eu sou assim por natureza e que estou muito feliz com isso, mas que enfim uma ilusão benéfica nunca passou pela verdade. É confundir aquilo que é com aquilo que se quer fazer ser. Se se considera aquilo que vai por si, sem que se faça nada por isso, o pessimismo é o verdadeiro; porque o curso das coisas humanas, desde que o abandonemos, vai imediatamente ao pior; por exemplo, quem se entrega ao seu humor é logo infeliz e mau. Isso é inevitável  pela estrutura do nosso corpo, que faz tudo acabar em mal quando o não vigiamos, quando o não governamos mais. Observai que um grupo de crianças, por falta dum jogo regrado, depressa chega a uma brutalidade informe. Aqui se mostra a lei biológica da excitação que vai imediatamente à irritação. Fazei a experiência de brincar a bater as mãos com uma criança; em breve ela se entrega ao jogo com uma espécie de furor que resulta da sua acção mesma. Outra experiência; fazer falar um rapazinho; admirai-o um pouco apenas; ele chega à extravagância logo que tenha vencido a timidez. A lição vos fará corar a vós mesmos, porque ela é boa para todos, ao mesmo tempo que amarga para todos; quem quer que se afoite a falar, sem governar a máquina, diz prontamente asneiras suficientes para maldizer em seguida a sua natureza e desesperar dele mesmo. Julgai depois disso uma multidão em efervescência, e esperareis todo o mal possível. No que não vos enganareis nada.

Mas aquele que conhece o mal pelas causas aprenderá a não maldizer e a não desesperar. A falta de jeito é a lei de toda a experiência, não importa em que género. O corpo, não formado pela ginástica, imediatamente se arrebata, e seja desenho, ou esgrima, ou equitação, ou conversação, logo aponta mal e falha naturalmente o alvo. Isso espanta, e parece dar razão ao pessimista; mas é preciso compreender pelas causas, e a principal coisa a considerar aqui, é esta ligação de todos os músculos que faz com que cada um deles, desde que se mexa, desperta todos os outros, e não primeiro aqueles que devem cooperar. O desajeitado pesa com todo o seu corpo sobre o menor movimento, e cada um é desajeitado primeiro, nem que seja para enterrar um prego. No entanto, não há limites à perícia que se pode adquirir com o exercício; todas as artes e todos os ofícios testemunham isso. E o desenho, este traçado do gesto, é talvez o testemunho mais eloquente de todos, quando é belo; porque essa mão pesada, impaciente, irritada, carregada de todo o corpo é no entanto capaz desse traço ligeiro, contido e como que purificado, submetido ao mesmo tempo ao juízo e à coisa. E o homem que grita e irrita a sua garganta é o mesmo que cantará; porque cada um recebe em herança este embrulho de nervos tremente e atado. É preciso desatar; e não é um pequeno trabalho. E todos sabem bem que a cólera e o desespero são os primeiros inimigos a vencer. É preciso crer, esperar e sorrir; e com isso trabalhar. Assim a condição humana é tal que se não se dá como regra das regras um optimismo invencível, logo o mais negro pessimismo é verdadeiro.
 
 
Alain
(Tradução de José Ames)

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