LXXV
Lia ontem um artigo sobre uma espécie de loucos com
opiniões, que, à força de verem as coisas sempre sob o mesmo ângulo, acabam por
se crerem perseguidos, e em breve são
perigosos e bons para serem encerrados. Esta leitura, que me lançava em tristes pensamentos (o que
há de mais triste de considerar do que um louco?), lembrou-me, no entanto, uma
boa resposta que tinha ouvido. Como se falava, na presença dum sábio, dum
semi-louco com a mania da perseguição que, por acréscimo, tinha sempre frio nos
pés, este sábio diz: ”Falta de circulação do sangue, e de circulação das
ideias.” Estas palavras são boas para meditar.
É certo que cada um de nós tem pensamentos de louco tanto
quanto quiser, como sonhos ou associações burlescas entre imagens. É a
linguagem interior sobretudo que cambaleia, e que, por um erro de pronúncia,
nos lança frequentemente em alguma ideia absurda. Somente nós não ficamos
aí. No homem normal, dá-se uma contínua mudança de ideias, como
num voo de mosquitos. E esquecemos de tal maneira as nossas loucuras que não
saberíamos responder exactamente a esta questão que parece tão simples: “Em que
é que pensa?” Esta circulação de ideias conduz muitas vezes a uma certa
futilidade e puerilidade. Ela é no entanto a própria saúde do espírito. E, se
eu tivesse de escolher, gostaria mais de ser despreocupado do que maníaco.
Não sei se aqueles que instruem as crianças e os homens já
reflectirem o suficiente sobre isso. A ouvi-los, julgar-se-ia que o principal é
ter ideias bem cimentadas e bem pesadas de mover. Para o que nos habituam
bastante cedo pelos seus ridículos exercícios de memória; e nós arrastamos toda
a nossa vida rosários de maus versos e de máximas ocas que nos fazem tropeçar a
cada passo. Em seguida, encerram-nos em
qualquer especialidade de litanias. Treinam-nos a remoer. E isso torna-se
perigoso com a idade, quando os nossos humores dão azedume aos nossos
pensamentos. Recitamos mentalmente a
tristeza, como recitamos a geografia em versos.
Que se desatem os espíritos, pelo contrário. Eu daria como
regra de higiene: “ Não tenhas nunca duas vezes o mesmo pensamento.” Ao que o
hipocondríaco dirá: “Eu não consigo; é que o meu cérebro é feito assim e mais
ou menos banhado em sangue.” É claro. Mas nós conhecemos justamente um método
para massajar o cérebro; é só preciso mudar de ideias; e não é difícil, se
estivermos treinados. Há duas práticas infalíveis para purgar o cérebro. Uma
consiste em olhar à sua volta e dar-se como que um duche de espectáculos; nunca
faltam; O outro consiste em subir dos efeitos às causas, o que é um meio seguro
de expulsar as imagens negras. Porque a cadeia das causas e dos efeitos
leva-nos de viagem, e logo de seguida muito longe; é uma outra maneira de
interrogar o oráculo, como se, em lugar de procurar por que pensamentos a Pítia
me predisse que eu acabaria avarento, eu quisesse compreender como é que a sua
boca formou essa palavra em vez de outra; eis-me nas vogais e nas consoantes, e
no plano inclinado que nos conduz dumas às outras; toda a fonética entra em
cena. Alguém teve um sonho medonho. Como eu o convidava a procurar as
verdadeiras causas, que são muitas vezes percepções ligadas a pequenas
indisposições, ele lançou-se às hipóteses, e eu vi que estava liberto. A circulação tinha sido
restabelecida.
Alain
(Tradução de José Ames)
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