sexta-feira, 18 de maio de 2012

HIGIENE DE ESPÍRITO

LXXV


Lia ontem um artigo sobre uma espécie de loucos com opiniões, que, à força de verem as coisas sempre sob o mesmo ângulo, acabam por se crerem perseguidos, e  em breve são perigosos e bons para serem encerrados. Esta leitura,  que me lançava em tristes pensamentos (o que há de mais triste de considerar do que um louco?), lembrou-me, no entanto, uma boa resposta que tinha ouvido. Como se falava, na presença dum sábio, dum semi-louco com a mania da perseguição que, por acréscimo, tinha sempre frio nos pés, este sábio diz: ”Falta de circulação do sangue, e de circulação das ideias.” Estas palavras são boas para meditar.

É certo que cada um de nós tem pensamentos de louco tanto quanto quiser, como sonhos ou associações burlescas entre imagens. É a linguagem interior sobretudo que cambaleia, e que, por um erro de pronúncia, nos lança frequentemente em alguma ideia absurda. Somente nós não ficamos aí.  No homem normal,  dá-se uma contínua mudança de ideias, como num voo de mosquitos. E esquecemos de tal maneira as nossas loucuras que não saberíamos responder exactamente a esta questão que parece tão simples: “Em que é que pensa?” Esta circulação de ideias conduz muitas vezes a uma certa futilidade e puerilidade. Ela é no entanto a própria saúde do espírito. E, se eu tivesse de escolher, gostaria mais de ser despreocupado do que maníaco.

Não sei se aqueles que instruem as crianças e os homens já reflectirem o suficiente sobre isso. A ouvi-los, julgar-se-ia que o principal é ter ideias bem cimentadas e bem pesadas de mover. Para o que nos habituam bastante cedo pelos seus ridículos exercícios de memória; e nós arrastamos toda a nossa vida rosários de maus versos e de máximas ocas que nos fazem tropeçar a cada passo. Em seguida,  encerram-nos em qualquer especialidade de litanias. Treinam-nos a remoer. E isso torna-se perigoso com a idade, quando os nossos humores dão azedume aos nossos pensamentos. Recitamos mentalmente a  tristeza, como recitamos a geografia em versos.

Que se desatem os espíritos, pelo contrário. Eu daria como regra de higiene: “ Não tenhas nunca duas vezes o mesmo pensamento.” Ao que o hipocondríaco dirá: “Eu não consigo; é que o meu cérebro é feito assim e mais ou menos banhado em sangue.” É claro. Mas nós conhecemos justamente um método para massajar o cérebro; é só preciso mudar de ideias; e não é difícil, se estivermos treinados. Há duas práticas infalíveis para purgar o cérebro. Uma consiste em olhar à sua volta e dar-se como que um duche de espectáculos; nunca faltam; O outro consiste em subir dos efeitos às causas, o que é um meio seguro de expulsar as imagens negras. Porque a cadeia das causas e dos efeitos leva-nos de viagem, e logo de seguida muito longe; é uma outra maneira de interrogar o oráculo, como se, em lugar de procurar por que pensamentos a Pítia me predisse que eu acabaria avarento, eu quisesse compreender como é que a sua boca formou essa palavra em vez de outra; eis-me nas vogais e nas consoantes, e no plano inclinado que nos conduz dumas às outras; toda a fonética entra em cena. Alguém teve um sonho medonho. Como eu o convidava a procurar as verdadeiras causas, que são muitas vezes percepções ligadas a pequenas indisposições, ele lançou-se às hipóteses, e eu vi que  estava liberto. A circulação tinha sido restabelecida.


Alain
(Tradução de José Ames)

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