quarta-feira, 2 de maio de 2012

EFERVESCÊNCIA

LXIV


Das guerras como das paixões. Um acesso de cólera nunca é explicável pelas causas que lhes damos para as  justificar, como interesses contrários, rivalidades, rancores. Circunstâncias favoráveis podem sempre parar a tragédia. Muitas vezes as discussões, as rixas, os homicídios resultam dum encontro fortuito. Suponhamos que dois homens dum mesmo círculo, entre os quais uma altercação parece inevitável, sejam levados por grandes interesses, e, por muito tempo, para duas cidades bastante afastadas; este facto tão simples estabelece a paz, coisa que os arrazoados não conseguiriam fazer. Toda a paixão é filha da ocasião. Se duas pessoas se vêem todos os dias, como um locatário e o seu porteiro, então os primeiros efeitos tornam-se causas por sua vez e os movimentos de impaciência e de cólera são motivos para se experimentarem cada vez mais vivos, o que faz com que haja frequentemente então uma desproporção ridícula entre as primeiras causas e o efeito final.

Quando uma criancinha chora  ou grita, produz-se um fenómeno puramente físico de que ela própria não se apercebe, mas ao qual os pais e os mestres devem prestar atenção. Os seus gritos fazem-lhe mal a si mesma e irritam-na ainda mais. As ameaças, os berros, engrossam ainda a avalanche. É a própria cólera que mantém a cólera. Por isso é preciso  agir fisicamente, por simples massagem, ou por mudança de percepções. O amor maternal mostra nesses casos a sua ciência quase infalível, quando passeia, acaricia ou embala a pequerrucha. Cura-se uma cãibra pela massagem; ora a cólera dum bebé e de não importa quem, é sempre um estado de contracção dos músculos que é preciso tratar por ginástica e música, como diziam os antigos. Mas, no acesso de cólera, os melhores argumentos são completamente inúteis e muitas vezes prejudiciais, porque lembram à imaginação tudo o que pode excitar a cólera.

Estas observações ajudam a compreender como a guerra é sempre de recear e pode sempre ser evitada. Sempre de temer pela efervescência, que, se ela se propaga, realizará a guerra, mesmo por fracas razões. Sempre evitável, quaisquer que sejam as razões, se a efervescência não entrar no caso. Ora os cidadãos devem considerar estas leis tão simples com atenção. Porque  dizem para si mesmos acabrunhados: “Que posso eu, pobre de mim, para pacificar a Europa? Novas causas de conflito surgem a cada instante. Levantam-se tantos problemas insolúveis quantos os dias que passam; uma solução aqui faz uma crise noutro sítio; só se desata atando, como num fio ensarilhado. Deixemos ir a necessidade.” Sim; mas a necessidade não vai à guerra, como o mostram de sobejo mil exemplos. Tudo se arranja e desarranja. Eu vi as costas da Bretanha  fortificadas contra a Inglaterra; não nos batemos no entanto por ali, a despeito dos maus profetas. Mas o verdadeiro perigo, é a efervescência; e aqui cada um é rei de si mesmo e senhor das tempestades pela sua parte. Poder imenso, que a massa dos cidadãos deve aprender a exercer. Sede felizes em primeiro lugar, como diz o Sábio; porque a felicidade não é o fruto da paz; é a própria paz.


Alain
(Tradução de José Ames)

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