LXIV
Das guerras como das paixões. Um acesso de cólera nunca é
explicável pelas causas que lhes damos para as
justificar, como interesses contrários, rivalidades, rancores.
Circunstâncias favoráveis podem sempre parar a tragédia. Muitas vezes as
discussões, as rixas, os homicídios resultam dum encontro fortuito. Suponhamos
que dois homens dum mesmo círculo, entre os quais uma altercação parece
inevitável, sejam levados por grandes interesses, e, por muito tempo, para duas
cidades bastante afastadas; este facto tão simples estabelece a paz, coisa que
os arrazoados não conseguiriam fazer. Toda a paixão é filha da ocasião. Se duas
pessoas se vêem todos os dias, como um locatário e o seu porteiro, então os primeiros
efeitos tornam-se causas por sua vez e os movimentos de impaciência e de cólera
são motivos para se experimentarem cada vez mais vivos, o que faz com que haja
frequentemente então uma desproporção ridícula entre as primeiras causas e o
efeito final.
Quando uma criancinha chora ou grita, produz-se um fenómeno puramente
físico de que ela própria não se apercebe, mas ao qual os pais e os mestres
devem prestar atenção. Os seus gritos fazem-lhe mal a si mesma e irritam-na
ainda mais. As ameaças, os berros, engrossam ainda a avalanche. É a própria
cólera que mantém a cólera. Por isso é preciso
agir fisicamente, por simples massagem, ou por mudança de percepções. O
amor maternal mostra nesses casos a sua ciência quase infalível, quando
passeia, acaricia ou embala a pequerrucha. Cura-se uma cãibra pela massagem;
ora a cólera dum bebé e de não importa quem, é sempre um estado de contracção
dos músculos que é preciso tratar por ginástica e música, como diziam os
antigos. Mas, no acesso de cólera, os melhores argumentos são completamente
inúteis e muitas vezes prejudiciais, porque lembram à imaginação tudo o que
pode excitar a cólera.
Estas observações ajudam a compreender como a guerra é
sempre de recear e pode sempre ser evitada. Sempre de temer pela efervescência,
que, se ela se propaga, realizará a guerra, mesmo por fracas razões. Sempre
evitável, quaisquer que sejam as razões, se a efervescência não entrar no caso.
Ora os cidadãos devem considerar estas leis tão simples com atenção. Porque dizem para si mesmos acabrunhados: “Que posso
eu, pobre de mim, para pacificar a Europa? Novas causas de conflito surgem a
cada instante. Levantam-se tantos problemas insolúveis quantos os dias que
passam; uma solução aqui faz uma crise noutro sítio; só se desata atando, como
num fio ensarilhado. Deixemos ir a necessidade.” Sim; mas a necessidade não vai
à guerra, como o mostram de sobejo mil exemplos. Tudo se arranja e desarranja.
Eu vi as costas da Bretanha fortificadas
contra a Inglaterra; não nos batemos no entanto por ali, a despeito dos maus
profetas. Mas o verdadeiro perigo, é a efervescência; e aqui cada um é rei de
si mesmo e senhor das tempestades pela sua parte. Poder imenso, que a massa dos
cidadãos deve aprender a exercer. Sede felizes em primeiro lugar, como diz o
Sábio; porque a felicidade não é o fruto da paz; é a própria paz.
Alain
(Tradução de José Ames)
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