terça-feira, 15 de maio de 2012

INJÚRIAS

LXXII


Se um fonógrafo vos cobrisse subitamente de injúrias, isso far-vos-ia rir. Se um homem de mau humor, mas quase sem voz, ligasse um fonógrafo de injúrias para contentar a sua cólera, ninguém ira acreditar que tal injúria, que por acaso fere, lhe fosse destinada. Mas quando é o rosto humano que lança a injúria, toda a gente quer crer que tudo o que ele diz é premeditado, ou pelo menos pensado no instante mesmo. O que engana, é a eloquência das paixões e a espécie de sentido que quase sempre oferecem palavras produzidas sem pensamento por uma boca humana.

Descartes escreveu a mais bela das suas obras e muito pouca lida, é o "Tratado das Paixões", justamente para explicar como a nossa máquina, pela sua forma e pelo vinco do hábito, chega facilmente a representar o pensamento. Para nós também. Porque, quando estamos muito zangados, primeiro imaginamos mil coisas que se acordam plenamente  com o nosso furor físico, e que, pela vivacidade, são outras tantas provas; e depois  produzimos ao mesmo tempo discursos frequentemente cheios de entoação e de verosimilhança, que nos comovem a nós mesmos como o faria o desempenho de um bom actor. Se alguém se aquece por imitação e nos dá a réplica, eis um belo drama, onde no entanto é verdade que os pensamentos seguem as palavras em vez de as precederem. A verdade do teatro está sem dúvida nisto que as personagens não param de reflectir sobre o que disseram. As suas palavras são como oráculos, de que procuram o sentido.

Num bom casal, os discursos improvisados no fogo da impaciência atingem muitas vezes o cúmulo do ridículo. E é preciso saber rir dessas belas improvisações. Mas a maior parte das pessoas ignora completamente este automatismo das emoções; tomam tudo ingenuamente, como heróis de Homero. Daí ódios a que é preciso chamar de imaginários. Eu admiro a segurança dum homem que odeia. Um árbitro não escuta nunca uma testemunha que se aquece até ao furor. Mas desde que um homem esteja em causa, crê em si mesmo; crê em tudo. Um dos nossos erros mais espantosos é esperar que a cólera deixe sair um pensamento muito tempo escondido; isso não é verdade uma vez em mil; é preciso que um homem se domine se quer dizer aquilo que pensa. Isso é evidente,  mas o entusiasmo, o empolgamento, a precipitação em procurar a réplica fazem-no esquecer. O bom abade Pirard, em O Vermelho e o Negro, prevê a coisa: “ Eu sou sujeito, diz ao seu amigo, a ficar com humor; pode acontecer que deixemos de nos falar.” A ingenuidade não pode ir mais longe. O quê? Se a minha cólera é um facto de fonógrafo, quero dizer de bílis, de estômago e de garganta, e se o sei bem, não posso assobiar o mau actor trágico no meio mesmo do seu discurso?

É de supor que as pragas, que são exclamações inteiramente desprovidas de sentido, tenham sido inventadas como que instintivamente para dar saída à cólera, sem  nada dizer de ofensivo nem de irreparável. E os nossos cocheiros, nos engarrafamentos, seriam pois filósofos sem o saberem. Mas é muito divertido ver entre estes cartuchos vazios, algum que às vezes fere por acaso. Podem-me injuriar em russo, que eu não compreendo nada. Mas se por acaso eu soubesse o russo? Realmente toda a injúria é algaraviada. Compreender bem isso, é compreender que não há nada que compreender.


Alain
(Tradução de José Ames)

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