LXXII
Se um fonógrafo vos cobrisse subitamente de injúrias, isso
far-vos-ia rir. Se um homem de mau humor, mas quase sem voz, ligasse um
fonógrafo de injúrias para contentar a sua cólera, ninguém ira acreditar que
tal injúria, que por acaso fere, lhe fosse destinada. Mas quando é o rosto
humano que lança a injúria, toda a gente quer crer que tudo o que ele diz é
premeditado, ou pelo menos pensado no instante mesmo. O que engana, é a
eloquência das paixões e a espécie de sentido que quase sempre oferecem
palavras produzidas sem pensamento por uma boca humana.
Descartes escreveu a mais bela das suas obras e muito
pouca lida, é o "Tratado das Paixões", justamente para explicar como a
nossa máquina, pela sua forma e pelo vinco do hábito, chega facilmente a
representar o pensamento. Para nós também. Porque, quando estamos muito
zangados, primeiro imaginamos mil coisas que se acordam plenamente com o nosso furor físico, e que, pela
vivacidade, são outras tantas provas; e depois
produzimos ao mesmo tempo discursos frequentemente cheios de entoação e
de verosimilhança, que nos comovem a nós mesmos como o faria o desempenho de um
bom actor. Se alguém se aquece por imitação e nos dá a réplica, eis um belo
drama, onde no entanto é verdade que os pensamentos seguem as palavras em vez
de as precederem. A verdade do teatro está sem dúvida nisto que as personagens
não param de reflectir sobre o que disseram. As suas palavras são como
oráculos, de que procuram o sentido.
Num bom casal, os discursos improvisados no fogo da
impaciência atingem muitas vezes o cúmulo do ridículo. E é preciso saber rir
dessas belas improvisações. Mas a maior parte das pessoas ignora completamente
este automatismo das emoções; tomam tudo ingenuamente, como heróis de Homero.
Daí ódios a que é preciso chamar de imaginários. Eu admiro a segurança dum
homem que odeia. Um árbitro não escuta nunca uma testemunha que se aquece até
ao furor. Mas desde que um homem esteja em causa, crê em si mesmo; crê em tudo.
Um dos nossos erros mais espantosos é esperar que a cólera deixe sair um
pensamento muito tempo escondido; isso não é verdade uma vez em mil; é preciso
que um homem se domine se quer dizer aquilo que pensa. Isso é evidente, mas o entusiasmo, o empolgamento, a
precipitação em procurar a réplica fazem-no esquecer. O bom abade Pirard, em O
Vermelho e o Negro, prevê a coisa: “ Eu sou sujeito, diz ao seu amigo, a
ficar com humor; pode acontecer que deixemos de nos falar.” A ingenuidade não
pode ir mais longe. O quê? Se a minha cólera é um facto de fonógrafo, quero
dizer de bílis, de estômago e de garganta, e se o sei bem, não posso assobiar o
mau actor trágico no meio mesmo do seu discurso?
É de supor que as pragas, que são exclamações inteiramente
desprovidas de sentido, tenham sido inventadas como que instintivamente para
dar saída à cólera, sem nada dizer de
ofensivo nem de irreparável. E os nossos cocheiros, nos engarrafamentos, seriam
pois filósofos sem o saberem. Mas é muito divertido ver entre estes cartuchos
vazios, algum que às vezes fere por acaso. Podem-me injuriar em russo, que eu
não compreendo nada. Mas se por acaso eu soubesse o russo? Realmente toda a
injúria é algaraviada. Compreender bem isso, é compreender que não há nada que
compreender.
Alain
(Tradução de José Ames)
Sem comentários:
Enviar um comentário