LXXX
Todas estas prendas, em tempo de consoada, chegam a mover
mais tristezas do que alegrias. Porque ninguém é suficientemente rico para
entrar no ano novo sem fazer muitas contas; e mais de um gemerá em segredo
pelos ninhos de poeira que recebeu de uns e outros, e que terá dado a uns e
outros, para enriquecer os comerciantes. Oiço ainda essa rapariguinha, cujos
pais têm muitos amigos, e que dizia, considerando o primeiro mata-borrão que
recebia no fim do ano: “Bom, eis os mata-borrões que chegam.” Há muita
indiferença, e cóleras reprimidas também, nesta fúria de oferecer. A obrigação
estraga tudo. E ao mesmo tempo os bombons de chocolate pesam no estômago e
alimentam a misantropia. Deixá-lo! Demos de pressa, e comamos depressa; é apenas
um momento a passar.
Vamos ao sério. Eu desejo-vos o bom humor. Eis o que era
preciso oferecer e receber. Eis a
verdadeira cortesia que enriquece toda a gente, e primeiro aquele que dá. Eis o
tesouro que se multiplica pela troca. Pode-se semeá-lo ao longo das ruas, nos
carros eléctricos, nos quiosques de jornais; não se perderá um átomo. Crescerá
e florescerá em todo o lado em que o lançardes. Quando se dá, em qualquer
cruzamento, um engarrafamento de viaturas,
são só palavrões e invectivas, e os cavalos puxam com toda a força, o que faz
com que o mal se agrave a ele mesmo. Todo o embaraço é assim; fácil de
desenvencilhar se quiséssemos sorrir, medir os nossos esforços, distender um
pouco todas as zangas que puxam cada uma para seu lado, mas depressa nó górdio,
pelo contrário, se se puxa rangendo os dentes em todas as pontas de corda. A
senhora range; a cozinheira range; a perna ficará demasiado cozida; daí
discursos furibundos. Para que todos
estes Prometeus fossem desacorrentados e livres, bastaria no entanto um sorriso
no momento certo. Mas ninguém pensa numa coisa tão simples. Todos trabalham em
puxar bem a corda que os estrangula.
A vida em comum multiplica os males. Entrais num
restaurante. Lançais um olhar inimigo ao vizinho, um outro ao menu, um outro ao
empregado. Está feito. O mau humor corre dum rosto ao outro; tudo se choca à
vossa volta; haverá talvez copos partidos, e o empregado baterá à noite na
mulher. Apreendei bem este mecanismo e este contágio; eis-vos mágico e
dispensador de alegria; em todo o lado deus benfazejo. Dizei uma boa palavra;
um bom obrigado; sede bons para a vitela fria; podereis seguir esta vaga de bom
humor até às mais pequenas praias; o empregado interpelará a cozinha com outro
tom, e as pessoas passarão de outra maneira entre as cadeiras; assim a vaga de
bom humor se alargará à vossa volta, aliviará todas as coisas e a vós mesmos.
Isso não tem fim. Mas atentai bem ao começo. Começai bem o dia, e começai bem o ano. Que tumulto nesta rua
estreita! Que injustiças, que violências! O sangue corre; é preciso que os
juízes intervenham. Tudo isso podia ser evitado pela prudência dum único
cocheiro, por um pequeníssimo movimento das suas mãos. Sede pois um bom
cocheiro. Põe-te à vontade no teu assento, e mantém o cavalo na mão.
Alain
(Tradução de José Ames)
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