terça-feira, 29 de maio de 2012

BOM ANO

LXXX


Todas estas prendas, em tempo de consoada, chegam a mover mais tristezas do que alegrias. Porque ninguém é suficientemente rico para entrar no ano novo sem fazer muitas contas; e mais de um gemerá em segredo pelos ninhos de poeira que recebeu de uns e outros, e que terá dado a uns e outros, para enriquecer os comerciantes. Oiço ainda essa rapariguinha, cujos pais têm muitos amigos, e que dizia, considerando o primeiro mata-borrão que recebia no fim do ano: “Bom, eis os mata-borrões que chegam.” Há muita indiferença, e cóleras reprimidas também, nesta fúria de oferecer. A obrigação estraga tudo. E ao mesmo tempo os bombons de chocolate pesam no estômago e alimentam a misantropia. Deixá-lo! Demos de pressa, e comamos depressa; é apenas um momento a passar.

Vamos ao sério. Eu desejo-vos o bom humor. Eis o que era preciso oferecer e receber.  Eis a verdadeira cortesia que enriquece toda a gente, e primeiro aquele que dá. Eis o tesouro que se multiplica pela troca. Pode-se semeá-lo ao longo das ruas, nos carros eléctricos, nos quiosques de jornais; não se perderá um átomo. Crescerá e florescerá em todo o lado em que o lançardes. Quando se dá, em qualquer cruzamento,  um engarrafamento de viaturas, são só palavrões e invectivas, e os cavalos puxam com toda a força, o que faz com que o mal se agrave a ele mesmo. Todo o embaraço é assim; fácil de desenvencilhar se quiséssemos sorrir, medir os nossos esforços, distender um pouco todas as zangas que puxam cada uma para seu lado, mas depressa nó górdio, pelo contrário, se se puxa rangendo os dentes em todas as pontas de corda. A senhora range; a cozinheira range; a perna ficará demasiado cozida; daí discursos  furibundos. Para que todos estes Prometeus fossem desacorrentados e livres, bastaria no entanto um sorriso no momento certo. Mas ninguém pensa numa coisa tão simples. Todos trabalham em puxar bem a corda que os estrangula.

A vida em comum multiplica os males. Entrais num restaurante. Lançais um olhar inimigo ao vizinho, um outro ao menu, um outro ao empregado. Está feito. O mau humor corre dum rosto ao outro; tudo se choca à vossa volta; haverá talvez copos partidos, e o empregado baterá à noite na mulher. Apreendei bem este mecanismo e este contágio; eis-vos mágico e dispensador de alegria; em todo o lado deus benfazejo. Dizei uma boa palavra; um bom obrigado; sede bons para a vitela fria; podereis seguir esta vaga de bom humor até às mais pequenas praias; o empregado interpelará a cozinha com outro tom, e as pessoas passarão de outra maneira entre as cadeiras; assim a vaga de bom humor se alargará à vossa volta, aliviará todas as coisas e a vós mesmos. Isso não tem fim. Mas atentai bem ao começo. Começai bem o dia, e  começai bem o ano. Que tumulto nesta rua estreita! Que injustiças, que violências! O sangue corre; é preciso que os juízes intervenham. Tudo isso podia ser evitado pela prudência dum único cocheiro, por um pequeníssimo movimento das suas mãos. Sede pois um bom cocheiro. Põe-te à vontade no teu assento, e mantém o cavalo na mão.


Alain
(Tradução de José Ames)

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