LXXVI
Encontro em Descartes esta ideia que a paixão do amor é
boa para a saúde, e o ódio, pelo contrário, mau. Ideia conhecida, mas não o
bastante familiar. Para dizer melhor, não se crê nisso. Riríamos até, se
Descartes não estivesse quase tanto acima da zombaria como o estão Homero e a
Bíblia. Não seria no entanto um pequeno progresso se os homens advertissem fazer por amor tudo o que fazem
por ódio, escolhendo, nestas coisas misturadas que são homens, acções e obras,
sempre o que é belo e bom para amar; é o meio mais poderoso de rebaixar o que é
mau. Em resumo, é melhor, é mais justo, é mais eficaz aplaudir a boa música do
que assobiar a má. Porquê? Porque o amor é fisiologicamente forte, e o ódio
fisiologicamente fraco. Mas o que é próprio dos homens apaixonados é não crerem
uma só palavra do que se escreve sobre as paixões.
É preciso pois compreender pelas causas; e eu encontro
estas causas também em Descartes. Porque, qual é, diz ele, o nosso primeiro
amor, o nosso mais antigo amor, senão esse sangue enriquecido de bom alimento,
desse ar puro, desse doce calor, enfim de tudo o que faz crescer o bebé? Foi
nos nossos primeiros anos que aprendemos a linguagem do amor, primeiro
dela para ela mesma, e expressa por esse
movimento, por essa flexão, por esse delicioso acordo dos órgãos vitais
acolhendo o bom leite. Inteiramente da mesma maneira que a primeira aprovação
foi esse movimento da cabeça que diz sim à boa sopa. E observai que, bem ao
contrário, como a cabeça e todo o corpo
da criança dizem não à sopa demasiado quente. Do mesmo modo também o estômago,
o coração, o corpo inteiro dizem não a todo o alimento que pode prejudicar, e
até a rejeitar por essa náusea que é a mais enérgica e a mais antiga expressão
do desprezo, da censura e da aversão. É por isso, com a brevidade e a
simplicidade homéricas, que Descartes diz que o ódio em todo o homem é
contrário a uma boa digestão.
Pode-se alargar, pode-se encher esta ideia admirável; não
a fatigaremos nunca, não se encontrarão os seus limites. O primeiro hino de
amor foi esse hino ao leite materno, cantado por todo o corpo da criança,
acolhendo, abraçando, desnatando por todos os seus meios o precioso alimento. E
este entusiasmo de mamar é fisiologicamente o primeiro no mundo. Quem não vê
que o primeiro exemplo do beijo está na criança de mama? Ela não esquece jamais
essa piedade primeira; beija ainda a cruz, Porque é bem preciso que os nosso
sinais sejam do nosso corpo. E semelhantemente o gesto de amaldiçoar é o antigo
gesto dos pulmões que recusam o ar viciado, do estômago que rejeita o leite
azedo, de todos os tecidos da defesa. Que proveito podes tirar da tua refeição,
ó leitor imprudente, se o ódio tempera os pratos? Por que não lês tu o Tratado
das Paixões da Alma? É verdade que o teu livreiro não sabe sequer o que é,
e que o teu psicólogo não o sabe melhor. Saber ler é quase tudo.
Alain
(Tradução de José Ames)
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