segunda-feira, 21 de maio de 2012

O HINO AO LEITE

LXXVI


Encontro em Descartes esta ideia que a paixão do amor é boa para a saúde, e o ódio, pelo contrário, mau. Ideia conhecida, mas não o bastante familiar. Para dizer melhor, não se crê nisso. Riríamos até, se Descartes não estivesse quase tanto acima da zombaria como o estão Homero e a Bíblia. Não seria no entanto um pequeno progresso se os homens  advertissem fazer por amor tudo o que fazem por ódio, escolhendo, nestas coisas misturadas que são homens, acções e obras, sempre o que é belo e bom para amar; é o meio mais poderoso de rebaixar o que é mau. Em resumo, é melhor, é mais justo, é mais eficaz aplaudir a boa música do que assobiar a má. Porquê? Porque o amor é fisiologicamente forte, e o ódio fisiologicamente fraco. Mas o que é próprio dos homens apaixonados é não crerem uma só palavra do que se escreve sobre as paixões.

É preciso pois compreender pelas causas; e eu encontro estas causas também em Descartes. Porque, qual é, diz ele, o nosso primeiro amor, o nosso mais antigo amor, senão esse sangue enriquecido de bom alimento, desse ar puro, desse doce calor, enfim de tudo o que faz crescer o bebé? Foi nos nossos primeiros anos que aprendemos a linguagem do amor, primeiro dela  para ela mesma, e expressa por esse movimento, por essa flexão, por esse delicioso acordo dos órgãos vitais acolhendo o bom leite. Inteiramente da mesma maneira que a primeira aprovação foi esse movimento da cabeça que diz sim à boa sopa. E observai que, bem ao contrário,  como a cabeça e todo o corpo da criança dizem não à sopa demasiado quente. Do mesmo modo também o estômago, o coração, o corpo inteiro dizem não a todo o alimento que pode prejudicar, e até a rejeitar por essa náusea que é a mais enérgica e a mais antiga expressão do desprezo, da censura e da aversão. É por isso, com a brevidade e a simplicidade homéricas, que Descartes diz que o ódio em todo o homem é contrário a uma boa digestão.

Pode-se alargar, pode-se encher esta ideia admirável; não a fatigaremos nunca, não se encontrarão os seus limites. O primeiro hino de amor foi esse hino ao leite materno, cantado por todo o corpo da criança, acolhendo, abraçando, desnatando por todos os seus meios o precioso alimento. E este entusiasmo de mamar é fisiologicamente o primeiro no mundo. Quem não vê que o primeiro exemplo do beijo está na criança de mama? Ela não esquece jamais essa piedade primeira; beija ainda a cruz, Porque é bem preciso que os nosso sinais sejam do nosso corpo. E semelhantemente o gesto de amaldiçoar é o antigo gesto dos pulmões que recusam o ar viciado, do estômago que rejeita o leite azedo, de todos os tecidos da defesa. Que proveito podes tirar da tua refeição, ó leitor imprudente, se o ódio tempera os pratos? Por que não lês tu o Tratado das Paixões da Alma? É verdade que o teu livreiro não sabe sequer o que é, e que o teu psicólogo não o sabe melhor. Saber ler é quase tudo.


Alain
(Tradução de José Ames)


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