LXVIII
“Peçamos a Deus que não seja o guarda campestre”, diziam
as pensionistas bem ingénuas perdidas nas culturas, e muito inquietas por causa
dum que homem que vinha. Considerei mais de uma vez este exemplo, diria quase
que este modelo de ingenuidade, antes de o compreender humanamente. É verdade
que tudo aí está confundido; mais sem dúvida nas palavras do que nas ideias,
como acontece com todos nós, que aprendemos a falar antes de aprender a pensar.
Esta anedota voltava-me ao espírito enquanto alguém
bastante inteligente batia o pé e resistia diante deste “optimismo determinado,
desta esperança de olhos fechados, desta mentira a si mesmo”. E era de Alain
que ele falava, porque este filósofo ingénuo, e quase selvagem ainda, queria
considerar, apesar das provas assaz evidentes, que os homens são de boa vontade
honestos, modestos, razoáveis e afectuosos; que a paz e a justiça vêm a nós
dando-se as mãos; que as virtudes guerreiras matarão a guerra; que o eleitor
escolherá os mais dignos, e outras piedosas consolações, que não mudam no
entanto os factos. É tal e qual como se um passeante dissesse, na soleira da sua porta: “Eis uma
nuvem grossa que me estraga já o passeio; por minha fé, prefiro acreditar que
não vai chover.” Vale mais ver a nuvem mais negra do que é e levar um guarda-chuva.
Era assim que ele troçava, e eu ria bem; porque este raciocínio que fazia mostra uma bela aparência, mas é só um
cenário sem espessura, e eu logo toquei com as mãos o rústico muro que é a
minha casa.
Há o futuro que se faz e o futuro que fazemos. O futuro
real compõe-se dos dois. A respeito do futuro que se faz, como tempestade ou
eclipse, não serve de nada esperar, é preciso saber, e observar com os olhos
secos. Como se limpam os vidros da luneta, assim é preciso limpar os olhos do
embaciado das paixões. Compreendo bem. As coisas do céu, que nunca modificamos,
ensinaram-nos a resignação e o espírito geométrico que são uma boa parte da
sabedoria. Mas nas coisas terrestres, quantas mudanças pelo homem industrioso!
O fogo, o trigo, o navio, o cão domesticado, o cavalo domado, eis obras que o
homem nunca teria feito se a ciência tivesse matado a esperança.
Sobretudo na própria ordem humana, em que a confiança faz
parte dos factos, eu conto muito mal se não contar a minha própria confiança.
Se acredito que vou cair, eu caio; se acredito que não posso fazer nada, nada
posso. Se creio que a minha esperança me ilude, ela ilude-me. Atenção aí. Eu
faço o bom tempo e a tempestade; primeiro, em mim; à minha volta também, no
mundo dos homens. Porque o desespero, e também a esperança, vão de um ao outro
mais depressa do que mudam as nuvens. Se tenho confiança, ele é honesto; se à
partida o acuso, ele rouba-me. Todos eles me pagam, conforme a moeda. E pensai
bem nisto ainda, é que a esperança só se mantém pela vontade, estando fundada
no que se fará se se quiser. Como paz e justiça; em lugar do que o desespero se
instala e se fortifica por si mesmo só pela força do que é. Aqui está por que
observações se salva o que é de salvar na religião, e que a religião perdeu,
quero dizer a bela esperança.
Alain
(Tradução de José Ames)
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