quinta-feira, 24 de maio de 2012

CERIMÓNIAS

LXXIX


Se a irresolução é o pior dos males, compreende-se que a cerimónia, a função, o trajo, a moda sejam os deuses deste mundo. Toda a improvisação irrita, não tanto pela ideia do que se poderia fazer ou dizer de diferente, mas mais pela mistura de duas acções no corpo, o que enlouquece os músculos nossos servidores, e por um rápido efeito, o coração, nosso tirano. Um homem surpreendido e apanhado em falta é um doente. É por isso que a liberdade torna o homem mau. A criança o mostra; não há jogo livre, que não se torne brutal. Sobre o que muito nos enganaríamos se supuséssemos maus instintos sempre retesados como arcos, e que a lei reprime. Mas a lei agrada, e pelo contrário a ausência de lei desagrada e irrita pela irresolução, o que leva à extravagância. O homem nu é frenético. O trajo é já uma lei, e toda a lei agrada como um trajo. Luís XIV teve um poder espantoso e na aparência inexplicável sobre aqueles que dele se aproximavam; isso provinha de todas aquelas leis que ele estabelecia, para levantar, deitar, cadeira furada. Não se deve dizer que é porque  era poderoso que impunha essas leis; mas pelo contrário, deve dizer-se que era poderoso porque ele mesmo era lei; cada um à sua volta sabia sempre, mais passo menos passo, o que tinha que fazer; donde alguma ideia da paz egípcia.

A guerra tem tudo para desagradar; mas o raciocínio engana-se nisso; é que nela os homens encontram imediatamente a paz; digo a verdadeira paz, a que habita a nossa pele. Cada um sabe o que tem a fazer. A razão em vão evoca a desgraça, mas não mete medo nenhum; não chega a cobrir um fundo de alegria; cada um vê uma função bem definida, que é a sua porção, e acções  que não pode adiar; todo o seu pensamento corre nesse sentido e o corpo segue; e este consentimento faz  logo um estado de coisas humanas, que é preciso aguentar, como se faz com um ciclone. Espantamo-nos que  os poderes obtenham tanto; mas eles obtêm muito  justamente porque pedem muito. Assim é a regra monástica que tão bem cura a irresolução. Não é nada aconselhar a oração; é preciso ordenar tal oração, a tal hora. A sabedoria própria dos poderes acaba sempre num comando seco, sem nenhuma razão. A menor razão fará nascer de imediato dois pensamentos e mil. Claro que é agradável pensar; mas é preciso que o prazer de pensar se contente com a arte de decidir. Este modelo do homem está em Descartes; e sabe-se que ele fez a guerra, não se pode dizer para o seu prazer, mas por um método de se libertar de pensamentos que o emocionavam demasiado.

Gostaríamos de rir da moda; mas a moda é qualquer coisa de muito sério. O espírito dá-se o ar de desprezar, mas primeiro põe uma gravata. O uniforme e o hábito revelam efeitos espantosos para acalmar. São vestimentas do sono; são pregas da doce preguiça, aquela que age sem pensar. A moda leva ao mesmo fim, mas poupando a  arte de escolher, que está toda na imaginação. As cores atraem, mas a necessidade de escolher amedrontaria. Aqui o mal só é mostrado para melhor se saborear o remédio, como no teatro. Donde esta segurança ontem em vermelho e reencontrada em azul. É um acordo de opinião, e é o acordo que faz a prova. Donde uma serenidade que realmente embeleza. Porque é verdade que o amarelo não fica bem às loiras, nem o verde às morenas. Mas o esgar da inquietude, da inveja e do desgosto não fica bem a ninguém.


Alain
(Tradução de José Ames)
                                                                                                                                                        

Sem comentários:

Enviar um comentário