LXX
Quando vou apanhar o comboio, oiço sempre pessoas que
dizem: "Você só chega a tal hora. Como esta viagem é longa e aborrecida!” O mal
é que elas acreditam nisso; e é aí que o nosso estóico teria dez vezes razão
quando diz: "Suprime o juízo, suprimes o mal.”
Se se olhassem as coisas de outra maneira, ser-se ia
levado a considerar uma viagem de caminho de ferro como um dos prazeres mais
vivos. Se se abrisse algum panorama onde se vissem as cores do céu e da terra e
a fuga das coisas como sobre uma grande roda cujo centro estivesse no fundo do
horizonte, se se desse um tal espectáculo, toda a gente gostaria de o ter
visto. E se o inventor realizasse também a trepidação do comboio e todos os
ruídos da viagem, ainda pareceria mais belo.
Ora todas estas maravilhas, desde que subis para o caminho
de ferro, as tendes grátis; sim, grátis, porque pagais para ser transportados,
não para ver vales, rios e montanhas. A vida está cheia destes prazeres vivos,
que não custam nada, e de que não gozamos o bastante. Seriam precisos letreiros
em todas as línguas e um pouco por todo o lado, para dizer: "Abri os olhos,
senti prazer.”
Ao que respondeis: "Eu sou viajante, não espectador. Um
assunto importante quer que eu esteja aqui ou ali, o mais cedo que possa. É
nisso que penso; conto os minutos e as voltas de roda. Maldigo essas paragens e
esses empregados indolentes que empurram as malas sem paixão. Eu empurro as
minhas em ideia; empurro o comboio. Você diz que não é razoável, e eu digo que
é natural e inevitável, se se tem um pouco de sangue nas veias.”
Certamente que é bom ter sangue nas veias; mas os animais
que triunfaram nesta terra não são os mais coléricos; são os mais razoáveis,
aqueles que guardam a sua paixão para o momento justo. Assim o terrível
esgrimista, não é aquele que bate com pé no soalho e que arranca antes de saber
para onde vai; é esse fleumático que espera que a passagem lhe seja aberta e
que passa por ela de súbito como uma andorinha. Da mesma maneira, vós que
aprendeis a agir, não empurreis a vossa carruagem, pois que ela anda sem vós.
Não empurreis o majestoso e imperturbável tempo que conduz todos os universos
em conjunto dum instante a outro instante. As coisas só esperam um olhar para
vos tomar e levar. Era preciso aprender a ser bom e amigo para si mesmo.
Alain
(Tradução de José Ames)
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