quinta-feira, 17 de maio de 2012

UMA CURA

LXXIV


Depois de terem contado os seus banhos, os seus duches e os seus regimes: “ Eu, diz o outro, faço desde há quinze dias uma cura de bom humor, e dou-me muito bem com isso. Há tempos em que os pensamentos se tornam azedos, em que se critica tudo com furor, em que não se vê mais nada de belo ou de bem, nem nos outros, nem em si mesmo. Quando as ideias rodam para esse lado, significa que é preciso fazer uma cura de bom humor. Isso consiste em exercer o seu bom humor contra todo o azar e sobretudo quanto às coisas sem importância, que vos fariam lançar em imprecações, se não se estivesse precisamente em cura de bom humor. Nessa altura, esses pequenos aborrecimentos são, pelo contrário, muito úteis, como as rampas para desenvolver a barriga das pernas.”

“Há, diz ainda o outro, pessoas aborrecidas que se reúnem para recriminar e gemer; foge-se delas em tempo normal; mas na cura de bom humor, pelo contrário, procuram-se; elas são como aquelas molas para a ginástica no quarto. Depois de ter puxado as pequenas para começar, chega-se a puxar as grandes. Do mesmo modo, eu classifico os meus amigos e conhecimentos por ordem de mau humor crescente, e exerço-me com uns depois dos outros. Quando estão ainda mais azedos do que o habitual, mais engenhosos em cuspir em todos os pratos, digo-me: “Oh! Que boa prova! Coragem, meu coração! vai; levanta mais essa queixa.”

“As coisas, diz ainda o outro, são muitas vezes boas assim, quero dizer más, tanto quanto é preciso para uma cura de bom humor. Um guisado queimado, pão da véspera, o sol, a poeira, contas a fazer, a bolsa quase a seco, isso dá lugar a preciosos exercícios. Dizemo-nos como no boxe ou na esgrima: “Eis um golpe de mestre que vem lá: trata-se de o evitar ou de o encaixar como deve ser.” Em tempo normal, pomo-nos a gritar, como as crianças, e ficamos tão envergonhados de gritar que se grita ainda mais forte. Mas, na cura de bom humor,  as coisas passam-se de maneira completamente diferente; recebemos a coisa como um bom duche; ; sacudimo-nos, encolhemos os ombros em dois tempos, e depois estendemos os músculos, flexibilizamo-los; lançam-se uns sobre os outros como linhos molhados; então a corrente da vida brota como uma fonte liberta; o apetite é bom; a barrela faz-se, a vida cheira bem. Mas, diz ele, deixo-vos; vós tendes agora os semblantes descontraídos; já não servis de nada para a minha cura de bom humor."


Alain
(Tradução de José Ames)

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